Os perigos do revisionismo historiográfico

Edição #3 | 09 de abril de 2024

Que a História está em constante revisão e reescrita, todos sabem. Faz parte do ofício de historiadores revisitar as interpretações feitas sobre os acontecimentos e, com rigor teórico-metodológico, reescrevê-las.

👉 Mas até que ponto o revisionismo é benéfico para a historiografia?

Enquanto lia e fichava um livro para a minha pesquisa do mestrado, me deparei com um capítulo que abordava uma temática antiga e familiar: o revisionismo historiográfico sobre a ditadura brasileira — que foi tema da minha primeira pesquisa de Iniciação Científica.

Em Dois Golpes, Duas Ditaduras, o historiador Eurelino Coelho trouxe um questionamento que me inspirou a revisitar minha pesquisa e a escrever essa newsletter:

O que está em disputa quando historiadores lutam entre si por diferentes visões do passado?

Não é segredo que existe uma relação entre o passado estudado pelo pesquisador e o presente no qual ele vive. Esse vínculo influencia na percepção do historiador sobre suas fontes e na sua visão de mundo e da História.

Portanto, ao lermos sob perspectiva histórica, devemos ponderar a subjetividade do historiador — subjetividade aqui entendida como participação ativa numa determinada visão de mundo.

Também é preciso ter em mente que o revisionismo em si não é uma prática condenável, já que está ligada ao ofício do historiador, como dito anteriormente. Porém, há conotações negativas quando as críticas à determinadas abordagens se fazem apologéticas ou reacionárias, pautadas em disputas ideológicas do presente.

A consolidação de determinadas interpretações podem estabelecer paradigmas que implicam diretamente na vida política contemporânea. Isso porque a disputa pela memória é constantemente revisada em busca de privilégio na retórica em defesa ou contra os acontecimentos do passado.

Eurelino Coelho trabalha com a hipótese de que há um golpe historiográfico em curso sobre 1964 e o período ditatorial. Para o autor, o revisionismo é

uma prática interpretativa promovida por estudiosos cujas pesquisas chegam a resultados mais ou menos coincidentes com as explicações e justificativas dadas para o golpe ou para a ditadura pelos seus próprios agentes e defensores.

Podemos ver o revisionismo em três teses sobre o golpe e a ditadura, que aparecem em pesquisas recentes:

  • Esquerda e direita foram igualmente responsáveis pelo golpe;

  • Haviam dois golpes em curso em 1964;

  • Não houve resistência à ditadura.

Sobre as evidências dessas teses:

Brincadeiras à parte e fazendo um parêntese, ouso acrescentar a denominação de “Ditadura Civil-Militar” como um revisionismo, já que imputa a responsabilidade sob a sociedade civil num geral, sem considerar que os civis atuantes eram empresários.

Minha interpretação se baseia no estudo de René Dreifuss, que classifica a ditadura como empresarial-militar, tendo em vista que muitos dos mecanismos de poder da ditadura eram dirigidos diretamente por grupos burgueses civis.

Esse revisionismo historiográfico é associado a tomada de posições diante das questões políticas do presente.

O historiador Demian de Melo foi certeiro ao afirmar que os revisionistas se comportam como intelectuais orgânicos do neoliberalismo.

Basta analisarmos a recepção dessas teses revisionistas por parte da grande imprensa e sua ação na construção da ideia de “ditabranda” — um exemplo é a obra de Elio Gaspari, que contém diversos problemas de ordem historiográfica, mas é divulgada amplamente pela mídia.

Perceba que ocorre uma política de criação de consenso em torno da ditadura, que estabelece aspectos “positivos” do período no senso comum. Quem nunca ouviu dizer que naquela época tinha mais segurança ou que a economia era muito melhor na ditadura?

Coelho afirma que esse acontecimento histórico é de interesse imediato da burguesia, que objetiva tornar universal a sua visão de mundo. E para isso, precisa descartar as interpretações classistas sobre o período ditatorial.

Veja bem, a hegemonia burguesa se consolidou nos anos 1990, o que levou a mudanças nas interpretações sobre o golpe e a ditadura. As pesquisas que se encontravam alinhadas com a posição burguesa receberam destaque no campo historiográfico e nos espaços de discussão pública que se abriram para a temática (Daniel Aarão Reis é um exemplo de historiador revisionista que atende aos interesses da burguesia).

Os estudos que não corroboram com o discurso revisionista são desqualificados ou mesmo reduzidos ao silêncio e ignorados. O mesmo acontece com os movimentos de luta por justiça e reparação — é só notar o negacionismo histórico do presidente Lula em suas falas e omissões sobre os 60 anos do golpe.

A memória sobre a ditadura é revista para se ajustar aos interesses dos dominantes.

A historiografia revisionista atinge o presente na falta de responsabilização dos agentes ditatoriais; na falta de reparação aos familiares dos mortos e desaparecidos; no desinteresse em criar espaços de memória sobre a ditadura; e no desconhecimento sobre as atrocidades cometidas no período.

Indo além, ao rotular como antidemocráticos aqueles que enfrentaram a ditadura, o revisionismo ataca não apenas esses sujeitos, mas também todos os que ousam desafiar, por meio de palavras e ações, os limites da democracia burguesa e se dedicam a construir uma democracia como poder popular.

O revisionismo historiográfico sobre a ditadura é um projeto de classe.

👉 E você, o que pensa sobre essa discussão? Me responde para continuarmos o debate.

Saudações históricas e até a próxima edição,

Paula Eloise

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